25.10.08

O senhor X, que substima os problemas técnicos e cromáticos deste blogue, a crise económica mundial e outros males que proliferam por aí, resolveu que as suas atenções eram todas da vizinha do quarto andar e transformou-se no maior pinga-amor de que há memória.
Com frequência, fica ausente e suspirante, escreve poemas e rimas manhosas no seu caderninho e, há dias, quando me preparava para provar a deliciosa tarte que encontrei no frigorífico, impediu-me, gritando que era para E-L-A.
Pensei que este E-L-A, arrebatador e sonante, significava um movimento importante, com reuniões clandestinas de chá e bolinhos, ou que então se tratava de uma qualquer divindade e que o senhor X se tornara um fanático religioso, mas, nunca, que a-fantástica-tarte-de-mirtilos-e-framboesas, que tinha sido cozinhada por si, se destinava, inteira, à vizinha do quarto andar.
Ainda não refeita desta cena, fui dar com o senhor X, muito concentrado, a tricotar o que parecia ser um vestido de lã vermelha. Perguntei-lhe se não estaria a exagerar, se não era um empreendimento de alto risco… E se as medidas não se ajustassem? É que nunca sabemos, de que ilusões de óptica não é capaz um pinga-amor!…
Na manhã seguinte, de saída para o trabalho, deparei-me com um senhor X muito apressado, galgando as escadas do prédio. Transportava uma caixa para bolos, um cabide com um vestido, um ramo de margaridas e o seu caderninho, no bolso do casaco dos acontecimentos especiais.
Ainda pensei gritar-lhe que estava prestes a meter-se numa grande alhada, mas pareceu-me que não tinha intenção de me dar ouvidos e, por isso, desisti.
Quando regressei, ao fim do dia, uma penumbra invernosa sobre a sala e o senhor X, ainda na sua indumentária de cerimónia, permanecia em absoluto silêncio, como se estivesse ali há horas. Decidi não dizer nada e fui apanhando os vários objectos que havia transportado pela manhã e que jaziam agora, espalhados pelo chão.
Felizmente, a-fantástica-tarte-de-mirtilos-e-framboesas tinha sobrevivido ao que parecia ter sido uma catástrofe. Convenci-o de que era melhor comê-la quanto antes e fui buscar a garrafa de Periquita, que tinha guardado para uma ocasião especial.
Só ao terceiro copo, revelou que a vizinha fatal se mudara para outra cidade, outro qualquer quarto andar… Olhou para a sua magnífica obra de tricôt e perguntou-me o que haveria de fazer daquilo. Foi então, que o seu rosto pareceu iluminar-se… mas logo entristeceu e aconteceu o pior; atreveu-se a considerar que, a mim, não me serviria…

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